A DIFUSORA, AS NOVENAS E A SAUDADE DA TERRA DE MACIEL MELO


A DIFUSORA, AS NOVENAS E A SAUDADE DA TERRA DE MACIEL MELO

 Maciel Melo, Trepidant's e Festa de Janeiro
 Fotos: Sérgio Coelho


Por Magno Martins:
A sabedoria nos faz levar ao passado para viver o presente. O passado é o lugar onde moram as coisas amadas que nos foram tomadas. Não se trata de saudosismo ou reminiscências. Dizem que o poeta escreve para invocar a saudade. Saudade é passado. Já me disseram que ausência de saudade é quando o corpo não está onde está.

Cecília Meireles dizia que escrevia o que não era. Fernando Pessoa disse que o poeta é um fingidor. “Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”, escreveu. Eu sou diferente. Sou igual ao que escrevo.

Não sei a razão, mas nunca escrevi nada sobre Iguaracy, uma pequenina cidade no Pajeú, que tem um pedaço do meu corpo dilacerado que deixei em Afogados da Ingazeira, minha terra. Maciel Melo, filho ilustre e amado de Iguaracy, fez uma bela música em homenagem à sua terra relembrando as novenas e a festa de São Sebastião.

Curti muito a festa de São Sebastião de calça curta, menino bobão, atrás de tubiba, nosso suco engarrafado numa sacolinha que a gente tomava para matar a sede e aliviar o calor das vidas secas. Como Afogados, nos anos 70, Iguaracy tinha um cordão de isolamento com o mundo. Não havia televisão, jornal era coisa do outro planeta. A falação e as fofocas chegavam pelas ondas sonoras da Rádio Pajeú, pioneira no Sertão.

As únicas importações modernas eram as músicas da Jovem Guarda. E de muita dor-de-cotovelo. Não me sai da memória Waldick Soriano, Antônio Marcos, Fernando Mendes, Amelinha, Ângela Maria e Aguinaldo Timóteo tocadas numa velha radiola e chegada aos nossos ouvidos sem pedir licença através de uma difusora pregada num poste.

Waldick soava bem aos ouvidos da matutada, que enchia a cara de cana contando causos e prosas nas barracas de feira. O relógio da vida não tem ponteiros. Só se houve o tique-taque. A alma tem sede de recordações. Perguntado se a sua alma teria sede de alguma coisa, Bernardo Soares sapecou: “Dos brinquedos mortos”.

Iguaracy não era brinquedo para mim. Nem vivo nem morto. Era trabalho, lugar onde minha família ganhava o pão. Meu pai tinha um pequeno comércio de miudezas, que só funcionava às segundas-feiras, dia da feira livre.

Ainda lembro. A loja de “seu Gastão” estava instalada numa casinha bem modesta, de cor branca, ao lado da Igreja, com um balcão nos separando dos fregueses, que eram muitos. Nunca me esqueço da cena rotineira do meu irmão Tasso, de portas fechadas ao final do dia, contando pacotes e mais pacotes de dinheiro do apurado do dia. Isso sem falar no fiado, anotado em duas cadernetas – a de casa e a do freguês.

Tasso, meu irmão mais velho, seguia cedo de Afogados em direção a Iguaracy numa velha rural fretada, que voltava empoeirada e mal cheirosa. Eu ou Marcelo, meu irmão encostado, com quem fiz muitas travessuras na infância e adolescência, recebia a missão do meu pai para levar a boia de Tasso numa marmita bem quentinha.

Diferente de Marcelo e eu, Tasso era requintado. Não comia nas biroscas da feira, não chambregava pelas esquinas com as matutinhas feito nós, não tomava umas carraspanas nem fumava escondido. Comida? Só a caseira da minha mãe Margarida.

Fazer chegar a ele a comidinha deliciosa preparada em Afogados da Ingazeira era uma aventura. A condução era um velho ônibus apinhado de gente e animais na Realeza de “seu” Pedro, que aceitava porcos, galinha, bezerros, tudo que coubesse na mala. Para ganhar uns trocados a mais, “seu” Pedro só não vendia a alma.

Meu tempo de Iguaracy também revela tristezas. Perdi ali Vicentinho, quase primo-irmão, esfaqueado por um monstro depois de uma noite boemia. Era um garoto de bem com a vida, dócil, amado por todos, incapaz de matar uma formiga. Rubem Alves diz que Minas tem mar. Lá, ele toma banho de mar olhando para o céu.

Em Iguaracy, eu olhava para cima, via as nuvens, navios que o vento tocava. Via as estrelas, que não se tocam, mas se contemplam. Maciel Melo, pode apostar, quando cantou a sua terra estava olhando para as estrelas, as estrelas de Amelinha.

Os olhos são a porta pela qual a beleza entra na alma. As canções da radiola na difusora de Iguaracy me chegam pelo vento e me fazem chorar de tão verdadeiras. Sempre que passo em Iguaracy, roteiro obrigatório para minha Afogados, ainda sinto o cheiro e vejo a beleza das flores que ali florescem com seu perfume todo especial na sua delicadeza.

Felizmente, o passado não é uma coisa que morre em nós e seca uma vez cumprido o seu ciclo. É o mais vivo dos tesouros e continua a nos enriquecer sem que saibamos. Envelhecendo, tenho medo que o meu passado se perca. Por isso, esta homenagem a Iguaracy, um passado feliz que o tempo ainda não me roubou.

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